• 40 anos de ANIMANDO, filme de Marcos Magalhães

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17 de agosto de 2021 por 

 

Prestes a completar 40 anos de sua produção, o filme
ANIMANDO, de Marcos Magalhães, é tema do texto que publicamos abaixo, escrito
por Wilson Lazaretti.

ANIMANDO

Filme de Marcos Magalhães de 1983

Animação e filmagem foram feitas em Montreal/Canadá de
outubro de 1981 a março de 1982; a sonorização em Outubro/Novembro de 1982 no
Rio de Janeiro, mas o filme só foi finalizado e lançado em 1983.

O início da produção desta obra está fazendo 40 anos. Nada
mais justo do que comemorar a sua realização. É um dos filmes mais preciosos
para entender o procedimento e processo de animação. É considerado como um dos
livros que compõe a Bíblia da Animação que correm pelo mundo afora. Em qualquer
festival de animação, você ouve falar dele. Seria quase um “Pelé” da animação.
Demonstra as técnicas com as quais se podia realizar um filme de animação à
época (década de 1980). Diga-se de passagem, até hoje se pode realizar filmes
com as mesmas técnicas.

O filme é resultado de uma bolsa da CAPES, com a qual Marcos
Magalhães foi contemplado. Para a nossa alegria o filme foi produzido na
NATIONAL FILM BOARD OF CANADA, uma das instituições mais importantes do mundo
dedicada à animação e também com o apoio da EMBRAFILME, uma empresa estatal
brasileira para a produção de filmes de vários gêneros.

Vamos destrinchá-lo porque vale muito a pena. A indicação
numérica segue a ordem do filme:

1)            O filme
foi realizado em película cinematográfica 16mm.

2)            O título
ANIMANDO e os demais créditos de todo o filme foram feitos com iluminação por
debaixo da mesa de filmagem. As letras eram transparentes e recortadas sobre um
fundo preto. A luz que vinha por debaixo da mesa dava cor às letras. A animação
do título foi feita descobrindo-se as letras pouco a pouco e quadro-a-quadro.
Geralmente usava-se um fotolito para as cartelas contendo os créditos.

3)            O som dos
passos também é importante. Não tem imagem, pois a tela está negra, mas o som
ali cumpre a função de nos aguçar a expectativa.

4)            A partir
de quando ele abre a porta, já temos ali a primeira técnica de animação, pois a
câmera funciona quadro-a-quadro. Na verdade, ele tem de parar, “brincar de
estátua”, para que a câmera capture sua imagem. Ele tem de permanecer estático
durante a tomada da fotografia. Esta técnica de animação é muito utilizada,
inclusive cientificamente, como, por exemplo, para observar uma rosa
desabrochando, para estudar decomposição de materiais biológicos e também de
metais. “KOYAANISQATSI” é um filme que utiliza muito esta técnica de animação.

5)            No plano
seguinte ele caminha em direção à mesa de filmagem. A câmera de filmagem está
presa sobre a mesa. A iluminação é calibrada, lateral e de ambos os lados, para
se ter uniformidade em toda a superfície a ser filmada.

6)            Em
seguida ele pega a primeira folha de papel e a fixa sobre a mesa. Esta mesa tem
uma régua de três pinos, um redondo no meio e dois laterais. Esta régua de
pinos é um padrão internacional, tem medidas específicas. Vejam que a sombra do
pino redondo tem a mesma intensidade de ambos os lados, o que significa que a
iluminação lateral está correta.

7)            Então é
feito o primeiro desenho. Observem também que a mesa gira para dar maior
comodidade ao animador.

8)            A segunda
folha de papel é colocada sobre a primeira, onde, devido a uma acentuação da
transparência do papel, que não aparece no filme, pode-se enxergar sem
dificuldade o que foi desenhado na primeira folha.

9)            Observem
também que a técnica de filmagem do próprio Marcos é a mesma de quando ele
chegou na sala de filmagem, ou seja: ele tem sempre de posar estático para a
tomada da fotografia pela câmera de filmar. Ele tem de ir levando,
quadro-a-quadro, a folha de papel até prendê-la na régua de animação. Ele faz
isso sucessivamente até completar o ciclo do passo. O modelo de câmera
utilizado para as filmagens tinha um dispositivo quadro-a-quadro que o próprio
Marcos acionava na caixa de comando da câmera que fica do lado esquerdo do
animador.

10)         Os desenhos
são numerados no canto superior direito, ao lado do pino retangular, que
evidentemente não aparece na filmagem. Neste caso, a câmera foi enquadrando o
desenho corretamente, isto é, realizou um movimento de “ZOOM IN” (uma
aproximação). A caixa controladora da mesa controlava a câmera e a mesa ao
mesmo tempo. A câmera podia levar a película para frente e também marcha à ré,
mover o obturador para abri-lo ou fechá-lo. Para movimentos de ZOOM IN e ZOOM
OUT já era um movimento da mesa e você já viu que o disco da mesa também gira.
Todos estes movimentos estão contidos em quase todos os programas de animação
que conhecemos, sendo, portanto, muito mais fácil a sua execução.

11)         A
aceleração da filmagem significa que os intervalos entre uma pose e outra foram
sendo maiores, até que a mão dele é retirada de cena e passa a ser, realmente,
a técnica de desenho animado. O ciclo do passo se repete por várias vezes. São
sempre os mesmos desenhos. As animações cíclicas sempre dão uma força na
animação, economizando trabalho gráfico.

12)         Em seguida,
volta-se à técnica quadro-a-quadro ou, se preferirem, “stop motion” de pessoas,
ou ainda pixilação, que vem do inglês pixilation. O material utilizado agora é
opaco de longe, mas transparente de perto. É o acetato.

13)         Este
acetato era um material caríssimo, disponível apenas para quem tinha muito
dinheiro para a produção. Todos os desenhos, feitos a lápis, eram novamente
traçados sobre o acetato com tinta nanquim.

14)         Vejam que o
traçado sobre o acetato também foi filmado quadro-a-quadro e temos a impressão de
que ele está em movimento.

15)         Agora o
desenho já transparente pode ser colocado sobre qualquer cenário. No caso desta
animação, e como geralmente era, os cenários eram fixados na régua de baixo e a
animação na régua de cima. Eram geralmente duas ou três vezes maiores no comprimento
para possibilitar o movimento PAN (panorâmico, na verdade é um TRAVELLING. A
diferença: PAN a câmera gira sobre um eixo e TRAVELLING, a câmera acompanha
paralelamente o assunto a ser filmado).

16)         Após o
traçado, os acetatos eram pintados no seu verso para que a tinta ficasse
chapadinha quando vistos do lado da filmagem. Mais uma vez, os grandes estúdios
utilizavam tintas especiais, próprias para aderir à superfície do acetato, que
era um material plástico. Aqui no Brasil, utilizávamos tinta látex branca
misturada com corantes. Hoje este processo é totalmente digital, desde a
própria animação até a pintura.

17)         Mas o
Marcos fez, inteligentemente, uma alusão aos custos dos materiais, fazendo com
que o seu boneco ficasse insatisfeito com aqueles artigos de luxo para um
simples animador independente. Como observei em aula, os animadores têm um quê
de humildade e ela se manifesta em toda a sua obra.

18)         Aí o
personagem volta para o papel e recebe lápis de cor. Observem novamente que a
técnica é quadro-a-quadro.

19)         Mais uma
vez a câmera enquadra corretamente o personagem, ou seja, realizou um ZOOM IN.

20)         A partir da
palmada sobre o desenho, ele muda de técnica, a qual chamamos de animação de
recortes. Esta técnica tem uma plástica diferente, parece menos suave do que um
desenho animado, mas tem sua razão de ser. Uma delas (na época) era substituir
o acetato e poder utilizar cenários diversos e abrir novas possibilidades.
Vocês vão ver que a técnica empregada depende, evidentemente, do domínio dela,
mas sobretudo do que se quer dizer com ela. Isto é, depende também do assunto
que se quer expressar em animação.

21)         As figuras
são recortadas, representando seus principais movimentos, ou até podemos chamar
de posições chaves (KEY FRAME).

22)         Agora vem a
técnica de pintura sobre vidro. No caso do Marcos é a mesma mesa de animação e
a superfície é um acrílico leitoso branco. Existem grandes filmes de animação,
os quais considero de animação acadêmica, como por exemplo O VELHO E O MAR de
Alexander Petrov, que utilizam esta técnica.

Marcos recebeu uma dica da animadora americana Caroline Leaf
para diluir a tinta guache com glicerina em vez de água, para evitar que a
tinta secasse e permanecesse maleável durante todo o processo da animação de
uma cena.

23)         É uma técnica
um pouco complicada para a época em que o filme foi realizado, pois não contou
com a referência da figura anterior e o animador tinha de usar a sua MEMÓRIA
MUSCULAR para animar. O que observamos no Marcos é que há uma profunda simbiose
entre ele e seu personagem, ambos se conhecem muito bem: um dado muito
importante para o animador, como também já disse para vocês. O reconhecimento
do autor e sua criação é fundamental para a animação.

24)         Em seguida
temos a animação com areia com a iluminação por cima da mesa de filmagem. A
simbiose funciona também aqui. Acho muito legal que o entorno da figura também
se move, o qual considero o tempero deste tipo de animação.

25)         Agora a
mesma técnica é iluminada com a luz por debaixo da mesa. Esta técnica chamamos
de sombra chinesa, muito utilizada com recortes opacos pela animadora alemã
Lotte Reiniger na década de 1920. Vale a pena estudar a obra dela, porque a
simbiose está presente nela também.

26)         O barbante
também é utilizado da mesma forma. Uma dica para animar os barbantes: Marcos os
borrifava com água para que ficassem úmidos e mais “obedientes” à manipulação
para modelar cada posição da animação. A luz por debaixo da mesa dá-lhe uma
nova plástica para a animação. Ali, Marcos já ensaiou a construção de uma narrativa,
estabelecendo um conflito entre o personagem e a tesoura.

27)         Ainda com a
câmera sobre a mesa ele introduz a técnica de animação de massinha. Observem
novamente a iluminação uniforme aplicada sobre a animação.

28)         Agora a
câmera está em outra posição (em um tripé), capturando o boneco de outro
ângulo. Marcos no início utiliza a mesma técnica quadro-a-quadro. O que é
importante notar é o grande ensinamento de Norman McLaren, que dizia: o
movimento, em qualquer técnica de animação, é criado no intervalo entre uma
posição e outra. Na verdade, “acontece” quando ele retira a mão após posicionar
o boneco para a próxima tomada. Este intervalo pode demorar alguns segundos,
mas geralmente demora mais, talvez até horas e mesmo dias entre uma posição e
outra. E é este intervalo o momento da criação do movimento, talvez o mais
sagrado templo do animador sob o qual se abriga para realizar suas animações.

29)         Mais uma
vez, com esta técnica, o Marcos surpreendeu, mostrando bem que o personagem fez
uma passagem entre as técnicas de 2D para 3D e que o personagem estranha muito
o ocorrido. Na verdade, é uma outra dimensão mesmo.

30)         Bom, o que
mais se podia ele fazer, a não ser descobrir uma outra técnica, desenhando
diretamente sobre película cinematográfica 35mm? Obviamente, Marcos não
descobriu nem inventou esta técnica, que antes foi utilizada por muitos
animadores experimentais como Len Lye e Norman McLaren. Estas cenas são
homenagens aos dois, principalmente a McLaren que era o tutor da minha bolsa.
Ele está arranhando a película 35mm que está velada. Fez umas referências
gráficas que colocou ao lado da película para servir-lhe de guia. Mas sabia
que, a cada quatro perfurações do filme, correspondia a uma imagem.

31)         Agora a
técnica é a mesma, mas o suporte é a película cinematográfica transparente.
Claro, esta foi revelada em laboratório para tornar-se transparente. A tinta
utilizada era, geralmente, nanquim, mas de qualquer forma, tinha de aderir bem
ao suporte. Hoje em dia pode-se usar caneta para retroprojetor que funciona
muito bem.

32)         No final,
mais uma vez é utilizada a técnica de filmagem quadro-a-quadro. Aqui vocês
percebem novamente a simbiose entre o personagem com o seu criador.

Wilson Lazaretti

Núcleo de Cinema de Animação de Campinas

Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, LIS
Laboratório de Imagem e Som/ Instituto de Artes/Departamento de Artes Visuais/

12/08/2021

Veja o filme: https://vimeo.com/178249990




E aqui, você vê o depoimento do Marcos Magalhães:

Fico muito feliz em constatar que comecei a animar meu
filme ANIMANDO há 40 anos e ele continua vivo e jovem!

Ele foi feito com uma alegria e uma inspiração muito
reais, já que eu estava realizando o sonho de produzir um filme em meio aos
animadores mais geniais do planeta, todos em plena atividade no NFB em Montreal.
Hoje sei que aquela foi uma época de ouro, quando Norman McLaren finalizava seu
último filme e eu podia conversar com ele e outros autores como Paul Driessen e
Caroline Leaf nos corredores ou na cafeteria do estúdio!

Terminei a animação achando que ele nem precisava de
trilha sonora – ele até participou de um festival em Ottawa ainda em versão
muda, e me disseram que foi muito bem recebido! Mas logo que pude, de volta ao
Brasil, chamei um bando de músicos feras para tocarem no estúdio assistindo a
cada cena do filme. Eu toquei piano (sou o “Marcos Amarante” dos
créditos, mas quem tocou o Debussy da primeira cena foi o Caio Senna). Adoro a
trilha, sou até hoje grato a todos que tocaram.

Eu costumo usar ele em minhas aulas de animação
exibindo-o duas vezes: uma com a trilha, e uma segunda em que faço ao vivo um
“comentário de diretor” enquanto as cenas se sucedem; um dia ainda
pretendo gravar estes comentários.

Também tenho uma versão com audiodescrição, com a qual
fui presenteado por um festival inclusivo.

Uma vez exibi esta versão no Instituto Benjamin Constant
no Rio, e um dos cegos presentes declarou, para minha surpresa, que era a
primeira vez que ele conseguia entender como eram feitos os desenhos animados!

Então recebo agora mais este presente, que é esse texto
do querido Wilson Lazaretti sobre o “quarentão”!

Muito obrigado!

Abraços animados,

Marcos

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